sexta-feira, dezembro 16, 2005

A Sombra

A Sombra (Estudo sobre a clandestinidade comunista) não é um livro novo. No entanto, este livro de José Pacheco Pereira parece-me intemporal. Pelo menos, enquanto os conceitos (à portuguesa) de ditadura, comunismo, movimento comunista e luta contra o regime perdurarem na memória colectiva. E ainda mais numa altura em que o terceiro volume da inédita biografia de Álvaro Cunhal, por autoria também de Pacheco Pereira, está ainda fresco e abundante nas livrarias. No entanto, para quem procura encontrar neste livro um auto de sátira acerca do Partido Comunista Português ou sobre os operários, poderá ser um livro decepcionante. A Sombra, assim como a biografia de Cunhal, não segue a via do «revisionismo», como algumas recensões têm dito, buscando construir uma aura de controvérsia em redor de obras de investigação.

É natural que jovens idealistas à direita procurem aqui um Revel, mas A Sombra tem outro cariz. Obviamente, é um estudo despido tanto de preconceito pelos militantes de uma ideologia ou utopia oposta (JPP não estuda o movimento comunista nacional há meia dúzia de dias) como de omissões abundantes nas edições Avante!. JPP faz, a partir de um resumo das raízes da formação dos PC's europeus e do leste («A profissionalização dos revolucionários reduz o diletantismo organizativo, a centralização da direcção conduz a uma unidade de acção, o combate às fracções e o recurso sistemático à depuração levam à constituição de núcleos «duros» e de inteira confiança, a persistente utilização de uma concepção militar e militarizada da política [...] induz efeitos de arregimentação e disposição combatentes»), um aprofundamento que se vai afastando, cada vez mais, da política, daquilo que nós, mais novos, conhecemos por acção política, em prática em regimes democráticos. É um aprofundamento, sobretudo, em direcção à vida das pessoas, dos militantes comunistas clandestinos.

Há duas coisas assombrosas acerca dos homens e das mulheres que «mergulham» (entram na clandestinidade, tornando-se outra pessoa na sociedade): primeiro, que é difícil encontrar a linha que divide o comunista da pessoa em si, pois há, simultaneamente, uma coragem e uma devoção cega que moldam a segunda submetendo-a ao primeiro; em segundo lugar, por mais que se «desça» na hierarquia do partido (porque há um hierarquia, mais forte do que em qualquer ideologia conservadora), o «clandestino» é sempre um braço directo do Partido, isto é, está sempre em contacto com a direcção nos seus actos quotidianos, desde o sair à rua como a escolha das «companheiras», mulheres «em missão» pelo Partido.

Por exemplo, repare-se qundo JPP cita um livro de Silva Marques: «Carlos Brito declarou-me então que eu teria de entregar tudo o que possuía do partido. Disse-lhe que estava de acordo. Mas que guardaria alguma coisa para mim. A minha resposta irritou-o, e, já sem nenhum vestígio da sua anterior amabilidade, de dedo em riste apontado para mim, fez-me saber: "Quem decide é o partido"».
Mas esta agressividade natural do Partido Comunista Português tem uma explicação racional, por vezes até exageradamente racional, o que assusta: é um Partido em luta permanente, em permanente desconfiança, em luta contra o Estado e contra a polícia política, em desconfiança das buscas, investigações e métodos da PIDE/DGS, e até mesmo dos próprios «camaradas» de partido. Daí a tenebrosa «naturalidade» com que acontecem denúncias dentro do Partido, denúncias «antes das denúncias» (uma espécie de mecanismo de defesa), e mesmo as famosas purgas.

Para mais, JPP refere, e eu dar-lhe-ia ênfase, a progressiva simetria PIDE-PCP. Tanto a polícia política de Salazar como o Partido Comunista vão criando os seus mecanismos de defesa e padrões de acção segundo o seu oposto. Por cada homem que a PIDE introduz secretamente nas aldeias ou ruas suspeitas, o PCP retira um homem em risco de ser descoberto («emerge», portanto) e coloca-o, ou a outro, noutro sítio qualquer. É uma luta constante, que ultrapassa de longe os trâmites da política, entre essa polícia e esse partido. Uma luta que, como sabemos, tendeu, pouco a pouco, a ir no sentido da «vitória» da PIDE, sem, no entanto, quebrar a incrível resistência dos comunistas.

O «factor clandestinidade» surge, diz JPP, em 1929, com a «reorganização» partidária de Bento Gonçalves. Essa clandestinidade surge, portanto, para ficar. Para muitos de nós, fica apenas como um imaginário roçando a lenda heróica (cf. «Manuel Tiago», por exemplo) ou como um estrato da história de Portugal vedado, por dentro, aos não-comunistas, aos «gentios» segundo a linguagem revolucionária.

Para quem está familiarizado com os métodos da cosa nostra, da mafia siciliana, o perigoso mundo da clandestinidade poderá parecer um mundo semelhante. Na verdade é. Pelo menos num sentido: nunca se sabe quem é o amigo e quem é o inimigo, portanto o perigo pode vir de qualquer lado. A Sombra deixa-nos um misto de curiosidade por um mundo que, tão cedo, o PCP não deixará a olho nu e de uma certa simpatia por homens e mulheres que (no meu caso, pelo menos) advogam um sonho político quase desumano e dão, literalmente, a sua identidade e a sua vida pela luta por esse sonho. Enfim, o mundo da clandestinidade é, sobretudo, um mundo ingrato, ou, como diz JPP: «há a tendência natural para as coisas correrem mal - a lei de Murphy. Um exemplo exagerado é aquilo que acontece nos pesadelos, em que qualquer acção ou tarefa nunca se conseguem acabar ou realizar porque aparecem sempre "coisas que sobram". Uma tradução paranóica destes sonhos encontra-se numa história de Ray Bradbury em que um criminoso quer apagar as suas impressões digitais e, como não sabe bem onde as deixou, tenta obsessivamente limpar tudo, sem nunca conseguir acabar, até que a polícia chega». Como eu dizia, é um mundo ingrato...

[João Silva]