domingo, dezembro 18, 2005

Conto de Natal (variação neo-realista*)

A mesa estava posta. Com toda a pompa que o momento exigia. As janelas, no entanto, continuavam fechadas para afastar o espírito da excepcionalidade dos curiosos do exterior. Afinal, nem todos os que ali estariam presentes tinham direito a festejar a quadra segundo o regime. O bacalhau, conseguira-o «Domingues», mas arranjara-o Zé Maria. Quem o havia cozinhado continuava em segredo. Tudo indicava que a ceia correria pelo melhor. Ainda embora faltasse muita gente.
-Por mim comemos. - suspirava «Domingues» encostado ao punho - Não como desde ontem.
-Não, que os camaradas ainda cá não estão - respondera alguém mais velho.
-Mas a fome não tem tempo nem tem convenções.
-Então vai comendo uma azevia, «Domingues».
Todos riram. Até que a euforia foi interrompida por duas pancadas secas na portaria da frente. O medo e o riso atropelavam-se mutuamente. Sem fazer barulho, alguém foi ver quem era.

*dedicado a amigos comunistas

[João Silva]