sexta-feira, novembro 25, 2005

Serge

Serge dedicava-se, de há tempos para cá, às inspirações líricas. Serge não escrevia mal, mas ninguém o publicava. Adoptou, por isso, uma velha técnica: fazia por se «esquecer», voluntariamente, dos seus rascunhos nos cafés literários.

Da primeira vez, deixou lá o caderno durante duas horas. Voltou. Ninguém lhe havia, sequer, mexido.
No segundo café, deixou cair o caderno perto de um editor conhecido e ficou à espreita da janela. O editor pisou-os sem ver.
Da terceira vez, «esqueceu-se» do caderno num café bem frequentado, durante toda a noite. Pensaram que a mesa estava ocupada. Ninguém lhe mexeu.
Desistiu. Ao passar pela tasca do Gafanhas, comprou tabaco e saiu. Só em casa se apercebeu: o caderno tinha ficado com o Gafanhas.

Ao voltar, não estava no sítio. Em vez disso, Gafanhas piscou-lhe o olho e palitou os dentes: «pensei que era lixo». Gafanhas alertou o grupo da sueca: «olha o poeta, olha». Serge saiu a correr em direcção a casa. Da varanda, atirou-se para a rua. Mas sempre lhe faltou uma certa pontaria: caiu no quintal de um vizinho emigrado. Uma vez mais, ninguém reparou na sua obra estatelada no chão. O mortou permaneceu invisível e imóvel durante duas semanas.

[João Silva]