quarta-feira, novembro 09, 2005

Raskolnikov e a vida urbana

Falar de Dostoiévski sem falar de Raskolnikov é como falar de Homero sem entrar no mítico mundo dos deuses olímpicos. No meu caso particular, Raskolnikov foi a primeira personagem com a qual entrei em contacto no mundo do escritor russo. Raskolnikov foi a primeira personagem que me marcou profundamente (marcou tanto que, quando acabei de ler o fascinante Crime e Castigo, apeteceu-me ser como o estudante revoltado que mata a velhota à machadada).

A vida urbana, com o stresse e as depressões a ela adjacentes, tem muito da personagem lendária de Dostoiévski. Desde os loucos aos mendigos, existe na cidade um pouco de Raskolnikov espalhado por tudo quanto é sítio. Mesmo em locais que, à partida, estariam isentos daquilo a que se convencionou chamar de loucura, existem grandes probabilidades de deflagrar uma grande tragédia. A família, por exemplo, é um núcleo que, de um momento para o outro, pode implodir a partir dos seus pilares mais básicos, ou seja, através dos paters, ou dos chefes de família. Com efeito, não raros são os casos em que um bom chefe de família se deixa apanhar pelas garras do desespero e foge com uma qualquer concubina de esplanada. Noutros casos, há os irmãos que se matam à facada, o pai que mata a filha depois de a violar, o pai que se desgraça na bebida, o filho rebelde que rouba para pagar a heroína. Enfim, os exemplos são muitos.

Num certo sentido, poder-se-ia argumentar que Raskolnikov representa a loucura humana levada aos seus extremos. É certo que, depois da loucura, vem a redenção e o castigo. Pelo menos no caso do jovem Raskolnikov. Contudo, se num caso limite, como parece ser o caso do jovem estudante russo, a loucura se pode metamorfosear em algo menos anormal, menos sanguinário, chega-se à conclusão de que a loucura é um estado transitório, provocado por condições de degradação física ou mental, e que pode ser controlável pelo crime (atropelar velhinhos de noite pode ser aliviante para alguns), quando a medicação falha ou não existe. Assim sendo, se a loucura redime, não é doença: é terapia. Olhem para alguns escritores.

[Paulo Ferreira]