sábado, outubro 22, 2005

Cavaco, a boa moeda

«Não gostar de Cavaco» é uma das posições menos convictas dos portugueses, apesar de ser uma das mais comuns. Aliás, Cavaco foi, ao mesmo tempo, razão para os indecisos sem «poiso ideológico» votarem no Partido Social Democrata (sempre identificado com o abstracto «centro-direita»), e razão para os eleitores mais liberais decidirem não votar nos grandes partidos (ou seja, ausência do chamado «voto útil»). No entanto, como eu dizia acima, é difícil anular Aníbal Cavaco Silva da política portuguesa. Cavaco está, de alguma forma, metido em tudo o que foi feito desde o atenuar dos consensos do Bloco Central e da longa década de habituação a um regime democrático. Está nas estruturas do país, quer queiramos quer não. Quase tudo o que está para além da gélida Constituição tem mão de Cavaco, sejam as coisas positivas, sejam as negativas. É a partir daqui que se faz a quase «automática» avaliação do percurso de Cavaco. Por muito que o possamos preterir ideologicamente, visto dos mais liberais ou dos mais nostálgicos do pré-cavaquismo, há sempre algo a favor de Cavaco. Quer queiramos quer não, aí está, de novo, Cavaco Silva, como candidato à Presidência da República de um país que ajudou a moldar, e uma grande maioria, parece-me, vai votar, sempre reticente (mas com consciência limpa) no professor.

No entanto, o juízo acerca de Cavaco não pode partir da sua «obra» como primeiro-ministro. Até porque o perfil nada tem a ver com «obra». E, em Cavaco, o que faz falta é a sua postura, algo mais humano do que essa espinhosa abstracção a que se costuma chamar «sentido de Estado». O perfil de Cavaco é o de um homem firme, organizado, com uma grande apetência para a contenção do risco - aliás, é esta necessidade metódica de planeamento dos «destinos» do país que, normalmente, dá origem ao planeamento da própria economia, coisa que limitou e limita o eleitorado de Cavaco Silva à «direita». Mas essa firmeza, a roçar a teimosia, longe agora dos tempos em que tudo valia para ser um «bom aluno» da UE, é precisamente o que faz falta a um país que atravessa um período de evoluções. O governo do PS, de José Sócrates, num esforço razoavelmente honesto, parece ter percebido isso. Cavaco também. Aliás, mais do que de mudança, o país precisa de solidificar certas estruturas benéficas ao crescimento. No discurso de apresentação da candidatura, na quinta-feira passada, Cavaco confirmou: «Sei bem as dificuldades que se colocam a qualquer Governo em tempos de mudança como aqueles que vivemos (...) Portugal não conseguirá ultrapassar a situação em que se encontra sem estabilidade».

Cavaco é estatista. As provas foram dadas ao longo de uma evolução de uma década. Mas isso não significa que traga o estigma de Salazar, ou seja, a convicção de que as coisas só funcionam quando se tem uma palavra a dizer em tudo o que se processa em Portugal. Cavaco, até pela experiência que teve com Mário Soares, sabe que os poderes presidenciais, apesar da sua extensão, são uma enorme responsabilidade, para além de serem dispositivos ao serviço da estabilidade do país, e não ao serviço da opinião pública. O Presidente deve ser um líder, uma referência de respeito, e não um justiceiro. Ora, tudo isto, parece-me, está incluído na experiência política de Cavaco Silva. Para além de saber manter à distância, e «em sentido», o PSD - o que, ironicamente, poderá ser um dos grandes trunfos de Marques Mendes nas eleições que se seguem para o partido.

Até mesmo em relação a Sócrates, Cavaco é uma das melhores coisas que podem acontecer. O PS terá, involuntariamente, no Presidente da República, um travão às obras visionárias e «modernizadoras» que os socialistas tanto gostam de planear para meio do mandato. Cavaco sabe o que são reformas. Sabe, sobretudo, a falta que fazem. E são essas reformas o ponto de partida para a harmonia do regime. Muito longe da liberalização dos sectores públicos, mas sem a deriva despesista de outros tempos e outros mandatos. Aliás, a própria forma da apresentação da candidatura de Cavaco (que achei muito satisfatória e muito «cavaquista») diz muito sobre a personalidade do candidato: directa, organizada e solitária. E, por solitária, também me refiro à ausência da influência pessoal dos líderes do PSD.

Apenas uma nota negativa em relação à noite do discurso: o final. Para além da caminhada prolongada e desnecessária, foram ridículas as vozes imberbes que, talvez equivocadas, gritavam por Cavaco ou por um clube de futebol - não percebi bem -, torcendo bem alto com os seus cânticos de relvado. São estes momentos que fazem desesperar Cavaco Silva. E, precisamente porque o fazem desesperar, fazem-no também, até mais ver, o candidato que apoio. Como Presidente da República, terá tudo para ser, finalmente, a «moeda boa» que faz falta a Portugal.

[João Silva]