segunda-feira, maio 23, 2005

Portugueses desconfiados

Geralmente, desconfio imenso de um português que afirma, numa frase previamente construída, que «lê muito e gosta muito de ler», sem contexto e sem provas. A verdade é que, num país onde não é costume levar um livro para a rua a pensar nos minutos que se poderão gastar em transportes, em filas, em cafés e em pausas, se alguém diz que «desde pequeno que lê muito», algo só pode estar errado no quadro que se nos apresenta.

Miguel Esteves Cardoso sugeriu, desde cedo, uma razão que pode explicar tudo: os portugueses não pegam em livros porque têm medo de apanhar com uma paulada nas costas enquanto estão distraídos. E, facto comprovado, o português tem mesmo medo de ser o único que não vê o que se passa, de não saber o que se passa. Daí bastar-lhe saber que o défice revelado é mais alto que no governo passado mas apenas conhecer um Ministro das Finanças, Manuela Ferreira Leite, simplesmente por ser vítima das piadas da «esquerda da folia e dos cartazes» (ou seja, toda). Quando há um acidente entre dois carros numa rua da cidade, nós (portugueses) vamos chegando e perguntando a quem já lá estava: «O que é que foi isto?». «O gajo saiu dali e enfiou-se neste». «Isto é que está para aqui um trinta e um...».

Devaneios à parte, os portugueses são, sem dúvida, animais pouco dados ao esforço e ao cansaço da leitura, mesmo que adorem jogar futebol e abraçarem-se suados e com hálito a álcool quando vêem um golo do Chalana ou, mais recentemente, do Cristiano Ronaldo. Pelo contrário, os portugueses adoram reservar os tempos livres, ou o seu horário de expediente na função pública, para, simplesmente, olhar para os outros. Para olhar para outro português e pensar: «Deixa estar que eu já te atendo», e, na função pública, a expressão é mesmo literal.

Nos cafés, o típico português olha para as pessoas com quem saiu que, por maus hábitos adoptados de outros países europeus, estão a ler, ignorando o mundo. Mas o típico português «não vai na conversa» - «gosto de pensar por mim próprio», diz. Ainda assim, sentindo-se ofendido, aproveita para quebrar o silêncio: «Por acaso, também gosto muito de ler. Mas antes é que eu lia muito. Agora até estou a ler dois». E os outros, educados, perguntam «hmm, o que está a ler?». «Ando a ler um livrinho sobre a arte chinesa de ler o futuro, e um sobre a influência do alinhamento dos planetas no casamento».

Portanto, para a próxima vez que abrirem um livro num café português, lembrem-se dos «outros». Ou seja, dos portugueses mais proteccionistas. Pois a ofensa de ler Flaubert ou Proust (nomes melodiosos) no café do Sr. Acácio é inigualável. «Olha agora! Estes agora andam aí com livrinhos das estrangeirices. Se quisesse cá produtos estrangeiros no estabelecimento tinha comprado. Queres ler está ali a Bola e a TV Guia... É o café do costume?».

[João Silva]