sexta-feira, dezembro 31, 2004

Eva penteia-se

Eva está a pentear-se. O cabelo dá-lhe luta. Daqui a um mês ambos farão vinte e um anos. É muito. As pessoas têm a mania de comparar a idade delas com a idade do mundo. Ainda não perceberam que, quanto mais duram as coisas, menos sentem. Quem quer ser uma montanha? Eu não. Uma montanha ainda vê menos que um anel. Sempre aquela paisagem. Turistas parvos e alpinistas, quando se tem sorte. Não há palavras para descrever a impaciência que nos provoca a velocidade da erosão ou a monotonia do ritmo das plantas, do céu e do mar. As pessoas acham-nos bonitos porque só olham para eles durante um bocadinho. No máximo uma hora e, mesmo assim, requer um sujeito muito contemplativo.
A vida humana, por muito estúpida e má, é mais interessante. De qualquer forma, o mundo está quase a acabar – como tem sempre de estar, desde que se criou, para que haja um mínimo de incitamento para continuar. Em contrapartida, o facto de piorar a olhos vistos, atendendo sobretudo ao facto de ter sido sempre um lugar miserável, é irreversível e não tem utilidade prática.


Miguel Esteves Cardoso, A vida inteira

[Paulo Ferreira]