terça-feira, dezembro 28, 2004

Elephant



Vi, finalmente, Elephant, de Gus Van Sant. As minhas reservas em relação ao realizador (e, normalmente, argumentista) limitam-se muito a um ponto, a uma característica má (quem sou eu para dizer que é «má»): uma subtileza narcisista patente em diversas das suas personagens que, naturalmente, se passeiam pelo mundo terreno contendo uma sapiência ou uma cultura inigualáveis por físicos, matemáticos e grandes cátedras de literatura, enquanto assobiam e coçam o traseiro. O génio que se negligencia a si e aos que o rodeia por vezes cansa em Van Sant, não deixando de se enquadrar em filmes muito bons, e com um sentido das relações humanas excepcional. O aparente pretensiosismo não «suplanta» a inegável qualidade do argumento e, mais importante, a excepcional «escola» de filmagem que Van Sant parece dominar.

Elephant não é Good Will Hunting. Não há génios incompreendidos, apenas rapazes e raparigas normais numa vida normal passada numa cidade indistinta dos Estados Unidos. Sobretudo, o argumento está despido de preconceitos contra a sociedade de «competição» opressora que, normalmente, brotaria de todos os poros em filmes abordando o mesmo tema (e não vale mesmo a pena falar do Bowling for Columbine, do tipo do boné...). A forma como Alex e Eric chegam à posse de armas é completamente normal - não há um clima de suspeição ou tensão na forma como procuram armas e as compram. E o próprio John, o good chap, combina ir à caça com o pai com a arma do avô.

A parte final do filme, do «massacre», está aterradora. A tensão que se cria, na nossa relação com o próprio personagem de Alex, é assustadora. Desde cedo sabemos que aquilo vai acontecer. Mas a frieza com que acontece é tremenda. É um miúdo «assustado» como qualquer dos outros, qualquer membro daquela escola. Não tem mais, nem tem menos, razões para entrar na escola armado. E, no entanto, fá-lo. É esse o grande retrato que parece transparecer dali. O retrato que devemos ver e compreender o mais rapidamente possível: que situações daquelas não acontecem porque os rapazes tenham razões para assassinar alguém, mas porque deixaram de ligar às razões para não o fazer.

É um grande filme. Um filme, passe a expressão comercialóide, frio e assustador. A realização, os planos de câmera deixando-nos conhecer e familiarizar com a escola, as cross stories que, no fundo, são uma só história de destino comum (não uma damnação, mas simplesmente o facto de estarem condenados), e a ambiência de normalidade juntam-se para criar um segundo mundo para além do filme. A Sonata ao Luar sempre ressoando no fundo cobre os acontecimentos de um pano ao mesmo tempo lírico e sombrio. O que mais nos assusta neste filme é a normalidade dos dias, ou das horas, que se seguem, na vida de cada um, como se não soubessem o que se viria a passar - é a constatação da fragilidade de cada um de nós, ao mesmo tempo vítimas e culpados de uma mesma condenação à morte. No fundo, o que mais nos aterroriza no filme é que, por mais que mantenhamos os sujeitos problemáticos agrilhoados ou presos com camisas de força, nunca sabemos quando pode chegar a nossa altura de passar pelo mesmo, de ser Alex...

[João Silva]