quinta-feira, outubro 14, 2004

Os meus problemas - Cinema

Ir ao cinema é uma distracção. É? Claro que não. O cinema tem duas funções que estão na génese da própria invenção dos Lumière: uma é distrair, outra é fazer com que o espectador saia do cinema a saber um pouco mais sobre qualquer coisa que seja. Mesmo que não ensine nada de novo, cria dúvidas e causa problemas mentais e sociais. Atrai-nos para coisas banais nas quais nunca pensamos. No entanto, o cinema não pode ser apenas um suporte para outras coisas. Não pode ser para «passar tempo». Certas pessoas não deviam poder entrar no cinema.

Uma dessas pessoas é o «brincalhão» (o palhaço). O «brincalhão» não vê a vida mais colorida ou mais alegre que as outras pessoas, simplesmente gosta de se auto-humilhar sendo o centro das atenções, sendo a piada. No escuro do cinema, privado das suas capacidades mímicas (não podem ver as caras que faz), tem de partir para as piadas verbais. Como tal, não se cala. Olha este, parece fulano! - diz o engraçado. Granda máquina! - diz o menino. Ó Manel, aquele pareces tu, pá! - e o rol de possíveis intervenções é interminável e imprevisível. O pior deste estatuto, de «engraçadinho», é que não nos podemos queixar. Com os queixumes, as suas piadas aumentam o volume, e mais, adquirem um alvo humano. A sua existência é uma tortura.

Outro caso, menos grave, mas igualmente irritante em diferentes graus, é o do casal de namorados. Encostam as cabecinhas no meio das cadeiras impedindo a visão dos outros. Dão beijinho quando a música triunfal surge no ecrã. Coram e abraçam-se quando há promessas de amor e confiança no ecrã. Não interessa se um dos dois anda a ouvir música triunfal fora do namoro, porque, no cinema, o amor torna-se meloso e nauseante. E ter de gramar com ecos e cochichos (as promessas de amor eterno) da rapaziada é deveras maçador. Mas isto só acontece com namoradinhos. Para eles, só há uma solução: casem-se.

As pipocas também são irritantes. Ou podem ser, não sendo sempre. Eu sou um deles. Sou o das pipocas. Obviamente não tenho o hábito de mastigar de boca aberta nem de atirar pipocas, mas tenho, em mim, um miúdo a fazer birras se toda a gente estiver a entrar na sala com pipocas menos eu. Uma vez ou outra, não resisto, e junto-me, também, à turba da irritante gentalha das pipocas.

Para além dos meninos mal-comportados, obviamente filhos de quem não sabe ler as letras mais pequenas (M/6, M/12), não há remédio. Fazem-me sentir velho, e a mais, na sala de cinema. Mas o pior, o pior de tudo, é o «rapaz teleponto». Há uma semana atrás, fui ver um filme, «acidentalmente», a um Cinema Lusomundo (às profundezas do Vesúvio). Atrás de mim, sentou-se uma voz. A voz veio de fora, mas sentou-se, na enormidade do cinema, precisamente atrás de mim. Uma mulher acompanhava a voz. Estou muito agradecido à voz. Graças a ela, fiquei a saber, depois de ler Kennedy International Airport, que era mesmo isso que estava lá escrito. Para o caso de ter dúvidas ou de me distrair, lá estava a voz para me inteirar do filme. Obrigado. Nos momentos mais «emocionantes», a voz ajudava a expectativa geral indagando, alto e bom som: O que é que ele vai fazer?. E depois, com a desilusão do romance, um sonoro mas lacrimejante Olha... Obrigado, voz. No fim, para não haver dúvidas, declamou: Acabou! Porque nunca se sabe se não haverá algo mais. Quando me levantei, a voz tinha desaparecido. Não vi ninguém. Não tinha reflexo físico. Um demónio incorpóreo (no mínimo um) parece deambular, sempre, pelas salas de cinema dos Lusomundos e afins zonas populares. Uma questão continua: nunca cheguei a ver a voz. Seria real?

[João Silva]