quarta-feira, agosto 18, 2004

O óbvio ululante

Na Pública do passado domingo, os leitores foram presenteados com uma reportagem acerca dos ex-maoístas dos tempos do 25 de Abril, que hoje navegam noutras águas ideológicas, menos agitadas. Mas não é das aventuras de Durão e José Manuel Fernandes, e restante rapaziada ex-exaltada que vou falar. O aspecto que retive da dita reportagem pouco ou nada tinha a ver com esse passado. José Lamego, ao definir a sua identidade política nos dias de hoje, afirmou:

"Sou um socialista liberal. Estou convicto de que a liberdade individual das pessoas é o princípio para uma política de esquerda. O que é a esquerda? Defender a liberdade e um sistema meritocrático e distributivo. A direita? São os defensores do privilégio e da tradição?"

Prefiro ignorar as considerações de Lamego acerca da "direita", que o dito não hesita em amalgamar como se de uma entidade una se tratasse. Basta passear pelos vários blogues de "direita" para se perceber que, dentro da dita, há muita discordância, e até em questões fundamentais. O que realmente aqui interessa é a defesa, por parte de Lamego, desse tal sistema "meritocrático e distributivo". Como pretende erigir tal maravilha ultrapassa-me. Como pode um sistema meritocrático ser simultaneamente distributivo? Como pode ser o mérito o elemento central desse sistema, quando a distribuição de riqueza está subordinada a um qualquer critério de justiça, totalmente independente do tal mérito (pois se esse critério fosse o mérito, teria sido escusada a junção do adjectivo "distributivo" ao "meritocrático")? Como pode um sistema ser composto de duas partes contraditórias? Não pode. Lamego acredita no princípio da autonomia individual. Mas acha que o Estado deve dar mais autonomia a quem a tem menos. Até certo ponto (acho que um mínimo deve ser garantido, pelo Estado, a um indivíduo), terá a sua razão. Mas Lamego parece ignorar que para dar essa tal autonomia aos que menos a têm, precisa de interferir na autonomia de outros. Lamego poderá defender que isso se justifica. De uma forma muito mais limitada, até eu o digo. Mas o que Lamego não pode fazer, como parece pretender com frases como a citada, é conciliar o inconciliável. A rapaziada que aqui me alberga estará a estranhar eu vir para aqui dizer o óbvio. Pelos vistos, o óbvio precisa de ser dito. Há quem não o veja. Parece ser o caso de José Lamego.


[Bruno Alves]